quinta-feira, 2 de junho de 2011

Por que ou por quê ?


A simples apresentação da palavra PORQUE evidencia a existência de uma locução (POR + QUE), sem que se possa garantir, na generalidade dos casos, quando se deixou de grafar separado (POR QUE) para grafar junto (PORQUE). Certo é que muitos escritores sempre ignoraram tal distinção (junto x separado), de forma que, até no mesmo texto, se encontram exemplos de POR QUE e PORQUE, em idênticas estruturas gramaticais, o que denuncia, por parte desses autores, desprezo pela questão bizantina, sem, nem de longe, ser comprometida a excelência literária de seus textos.
Mais modernamente, contudo, os gramáticos têm se empenhado (sic) em estabelecer um código de aplicação, ao qual se deve, sem dúvida, o mérito de uma uniformização vantajosa para a descrição gramatical.
Parece que o PORQUÊ mais rebelde a essa sistematização foi (e é) o advérbio interrogativo de causa (por quê? = por qual razão? por qual motivo?), rebeldia essa assentada na larga tradição do idioma e estimulada pela analogia com o advérbio interrogativo francês (pourquoi?), com o italiano (perchè?) e certamente com o substantivo espanhol porqué (=causa, razão etc.). PORQUE (junto) era a prática adotada pelos que melhor escreviam e mais profundo tinham o sentimento de língua.
“Porque virá o conde quase de luto à festa?” (Rebelo da Silva; Última corrida de touros em Salvaterra; in Antologia Nacional, Fausto Barreto e Carlos de Laet, 6ª edição).
“Porque não fez ele isso há mais tempo?” (Machado de Assis, Papéis avulsos, 106)
“_ Que a deixe? Que a deixe porquê?” (Machado de Assis, Várias histórias)
É fora de dúvida, entretanto, que em algumas incidências o advérbio PORQUE (grafado junto) impunha à frase sensível ambigüidade, com prejuízo da clareza e conseqüente empobrecimento do estilo.
Por exemplo:
“Não sei porque você não me disse a verdade.”
Há dois entendimentos:
(1) Não sei por qual razão você não me disse a verdade.
(Não sei isto = oração subordinada substantiva objetiva direta; interrogação indireta)
(2) Não sei, pois você não me disse a verdade.
(porque, pois = oração subordinada adverbial causal ou coordenada sindética explicativa)
Deve estar aí, nessa ambigüidade, a razão de os organizadores do Formulário Ortográfico e do Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (PVOLP), de 1943, oficiais ambos, terem, numa lição não muito clara, recomendado grafar-se POR QUE e POR QUÊ (= por qual razão, por qual motivo), no começo ou no fim de interrogações, respectivamente, sempre que se tratar do advérbio interrogativo de causa. A partir de então, consagrou-se a forma POR QUE (= por qual razão), visto ser oficial a ortografia, desde 1943. É assim, por conseguinte, que hoje estarão ortografados (por que) os exemplos acima, de Rebelo da Silva e Machado de Assis.
Discutidas tais dificuldades, podemos tentar – creio – uma sistematização que, embora não seja exaustiva, abrigue os casos mais expressivos.

1º CASO – PORQUE

(junto e sem acento)
a) conjunção causal/explicativa, equivalente a POIS ou COMO
“ Não foi ao baile, porque (=pois) não tinha roupa.”
“Porque (=como) não estava autorizado, não pôde ingressar no recinto.”
b) conjunção causal/explicativa em interrogações com caráter de objeção, dúvida ou surpresa.
Um diálogo:
_ Paulo não veio à aula porque (=pois) não tem caderno.
_ Não veio à aula porque (=pois) não tem caderno? Não creio, não.
c) conjunção subordinativa final (= para que)
"Tudo fizemos porque (= para que) ele sarasse do mal que o afligia."

2º CASO – PORQUÊ

(junto e com acento)
a) substantivo (=pergunta; causa, razão)
“Ignora-se o porquê (= a causa) da sua renúncia.”
“São muitos os porquês (= as perguntas) que estão sem resposta.”
Obs.: Em geral, o PORQUÊ substantivo é precedido de artigo.
b) conjunção causal/explicativa em “discurso” interrompido pela superposição de outro “discurso”.
Um diálogo:
_ Eu lhe tinha pedido permissão para sair mais cedo porquê...
_ Estão proibidas as saídas cedo.
Obs: Não é unânime a acentuação de PORQUE, nessa hipótese.

3º CASO – POR QUE

(separado e sem acento)
a) preposição POR (regência verbal ou nominal) + conjunção integrante QUE.
(1) “Opinou por que se concedesse a licença.”
Opinou por isto = oração subordinada substantiva objetiva indireta.
(2) “Sempre se mostrou interessado por que se concluísse a negociação.”
Interessado por isto = oração subordinada substantiva completiva nominal.
b) preposição POR + pronome relativo QUE
“São ásperos os caminhos por que passei.”
POR QUE (= pelos quais caminhos) – adjunto adverbial de lugar “por onde”.
Passei pelos quais caminhos.
c) preposição POR + pronome interrogativo substantivo QUE (= qual coisa)
(1) Interrogação Direta
“Por que (= por qual coisa) estavas tu, na época, interessado?
POR QUE (= por qual coisa) – complemento nominal de “interessado”
(2) Interrogação Indireta
“Não se sabe por que (por qual coisa) estavas tu, na época, interessado.”
Não se sabe isto (= oração subordinada substantiva subjetiva)
POR QUE (= por qual coisa) – complemento nominal de “interessado”.
d) preposição POR + pronome interrogativo adjetivo QUE (= qual)
(1) Interrogação Direta
“Por que cargo estavas tu, na época, interessado?”
POR QUE CARGO (= por qual cargo) – QUE – adjunto adnominal de “cargo”
(2) Interrogação Indireta
“Não se sabe por que cargo estavas tu, na época, interessado”
Não se sabe isto (= oração subordinada substantiva subjetiva)
POR QUE CARGO (= por qual cargo)
QUE – adjunto adnominal de “cargo”.
e) POR QUE (=por qual motivo, razão) – advérbio interrogativo de causa
(1) Interrogação Direta
“Por que foste reprovado?”
POR QUE (= por qual motivo) – adjunto adverbial de causa
(2) Interrogação Indireta
“Quero saber por que foste reprovado.”
Quero saber isto (= oração subordinada substantiva objetiva direta)
POR QUE (= por qual motivo) – adjunto adverbial de causa.

4º CASO – POR QUÊ

(separado e com acento) – advérbio interrogativo no final de frase interrogativa
(1) Interrogação Direta
“Não vais à aula por quê?”
POR QUÊ (= por qual motivo) – adjunto adverbial de causa
(2) Interrogação Indireta Atípica
“Foi reprovado e não sabe por quê.”
Obs.: Esta coordenação (E) é meramente formal. Em verdade, a estrutura matriz é:
“(Ele) não sabe por que foi reprovado.”
Note-se que o adjunto adverbial de causa (por quê) não pertence para o verbo SABER, como parece, mas sim para o verbo REPROVAR (Ele foi reprovado por quê?). Criou-se, então, uma estrutura inteiramente atípica: uma interrogação indireta sem o concurso de oração subordinada substantiva. Esta é a razão de a interrogação não estar marcada com “ponto-de-interrogação” (?): “Não sabe por quê?”, o que seria coisa inteiramente diversa.

5ª CASO: POR QUÊ

(separado e com acento) – advérbio interrogativo no final de segmento melódico, embora não coincida com o final da frase gramatical.
“Por quê, divino mestre,
Com teu poder celeste,
Ao homem que cegara,
De novo ver fizeste?”
(Francisco Otaviano)
Esse QUÊ (Por quê) é, de fato, monossílabo tônico, pois, embora não esteja no final da frase, está no final de um segmento melódico, já que a aposição (divino mestre) e a inversão de toda a estrutura interrompem a seqüência melódica que teria a frase em disposição regular.
“Por que fizeste ver de novo o homem que cegara?”
Obs.: O domínio dos fenômenos da fonética sintática exigiria do redator a acentuação gráfica desse monossílabo, indiscutivelmente tônico; nem sempre, contudo, isto ocorre.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

1ª) Depois da partícula designativa EIS, escreve-se POR QUE (separado)
“Eis por que ela não pôde voltar.”
Obs.: O QUE é pronome relativo de um antecedente elíptico.
“Eis (a razão) por que (= pelo qual) ela ...
2ª) Em títulos ou manchetes, grafa-se POR QUE (separado)
POR QUE FOI CASSADO O PREFEITO.
Obs.: Semelhantemente ao caso anterior, o QUE é pronome relativo.
(A razão) por que (= pelo qual) foi cassado...
3ª) POR QUE (= por qual, por qual coisa) é preposição + pronome interrogativo;
POR QUE (= por qual razão) é advérbio interrogativo de causa.
4ª) PORQUE, conjunção final (= para que) é, segundo a tradição da língua, grafado junto, embora se encontrem exemplos com POR QUE (separado)
“Faço votos porque (= para que) sejam felizes.” (comum)
“Faço votos por que (= para que) sejam felizes.” (raro)

Até breve.

Um comentário:

  1. Adorei a explicação, pois essa matéria é difícil e confunde um pouco, mas entendi tudo o que está na postagem.

    ResponderExcluir